QUANDO ÀSÉ NÃO É AXÉ !, P. 48

Quando à não é axé !

(Revisto e aumentado)
Luiz L. Marins
Dezembro de 2010


Em uma conversa descontraída com um amigo iorubá de Ijebu-Ode, mostrei a ele um jornal voltado para o segmento da religião dos Orixás. Ele começou a folhear e de repente parou numa página que trazia a propaganda de uma casa de candomblé e começou a rir disfarçadamente. Ao olhar a página, verifiquei que estava escrito em letras grandes a seguinte frase: Ilé Àṣẹ́ Sàngó.

Sem me dar conta, perguntei qual era o motivo do riso, e ele, esforçando-se por falar, entre risos, disse-me que ali estava escrito, mais ou menos isto: “Casa da Menstruação de Xango”, e explicou: àṣẹ́ não é àṣẹ.

Posteriormente consultei os dicionários de iorubá, e verifiquei que ele tinha razão.

Devido a nossa falta de hábito com a ortografia e gramática da língua iorubá, nós, falantes nativos de português, cometemos muitos erros quando tentamos escrevê-la corretamente, e na maioria das vezes não damos importância a detalhes que, para nós são insignificantes, mas que aos olhos de um iorubá nativo, o que escrevemos não faz sentido.

Vamos relembrar alguns aspectos básicos do idioma do iorubá e os tons:

( à ) tom descendente
( á ) tom ascendente
( a ) tom médio
( àá ) = ( ã ) tom duplo[1]

Vogais:
a e ẹ i o ọ u

Fonética em português:
a ê é i ô ó u

Consoantes
B D F G GB H J K L M N P R S ṣ T W Y

A letra s em português tem o som de X ou CH.

Assim, uma alteração no tom da palavra, tanto falada quanto escrita, altera completamente o significado, e neste estudo vamos usar como exemplo a palavra “axé”, devido às diversas formas que ela aparece escrita nos jornais distribuídos nas lojas de artigos religiosos, como também na internet.

Para elucidar melhor a questão, vamos transcrever dos dicionários de iorubá que dispomos, não apenas a palavra àṣẹ, mas também outras palavras similares que podem induzir-nos ao erro. Veremos que muitas palavras são realmente parecidas, motivo pelo qual devemos ficar atentos aos tons, pois são eles que fazem a diferença do sentido.

Entretanto, a questão maior não é nem mesmo a ortografia ioruba, mas transliteração e reinterpretação (ìtúùmò) para o iorubês[2], pois adaptados à fonética da língua portuguesa, muitos vocábulos são escritos da mesma forma.
Vejamos:


A Dictionary of the Yoruba Language, CMS, Ibadan, Oxford University Press, 1977 [1913]:
YORÙBÁIORUBÊS
- Àse: festa, entretenimento.

assê
- Ase: um tipo de animal como o esquilo.assê
- Asẹ́: coador.assé
- Ãsẹ̀: porta larga.ãssé
Àṣẹ́: menstruação.axé
Àṣẹ: lei, ordem, instrução, comando.axé
- Ãṣẹ: amém.ãxé


Dictionary of Modern Yoruba, R. C. Abraham, London, Hodder and Stoughton, 1981 [1946]
- Àsè: ato de estar cozinhando.

assê
- Àsé: bloquear, represar.assê
- Àsé: prefixo usado na composição de palavras.assê
- Asẹ́: coador.assé
- Àṣé: (expressão) to fora!axê!
- Àṣe: prefixo usado na composição de palavras.axê
- Aṣe: idemaxê
Àṣẹ: uma ordem, um comando, um poder.axé!
- Àṣẹ́: prefixo usado na composição de palavras.axé
Àṣẹ́: menstruação.axé
- Aṣẹ́: prefixo usado em composição de palavras.axé
- Áṣẹ́: tipo de pássaro (Macrodipteryx Longipennis)axé
- Ààṣẹ̀: porta largaaaxé


De fato, podemos constatar que meu amigo ioruba tinha razão, e como vimos, esta palavra, e mais pelo menos uma centena delas, adaptadas ao iorubês, originalmente com significados completamente diferentes, tornam-se praticamente uma, gerando enormes erros conceituais quando tentamos reinterpretar e traduzir a nossa “herança fonética africana”[3].

Existe um sem número de palavras com as quais poderíamos nos estender neste espaço, por exemplo, orum. Esta palavra é uma verdadeira armadilha para pseudo-tradutores de plantão. A primeira tentação que vem à mente, é traduzi-la por céu, entretanto, aproveitando o tema, vejamos nos dicionários de iorubá outras palavras que, em iorubês, tem a mesma fonética, e que podem nos levar a errar um ìtùúmò.


A Dictionary of the Yoruba Language, CMS, Ibadan, Oxford University Press, 1977 [1913]:
YORÙBÁIORUBÊS
- Õrùn: sol

orum
- Õrun: sono; dormirorum
- Òrùn: aroma, cheiro, odororum
Orun: inclinar a cabeça em reverência, laço, arcoórum
Òrùn: pescoçoórum
Òrún: uma centena, cemórum
Òrun: céu, mundo espirituórum


Dictionary of Modern Yoruba, R. C. Abraham, London, Hodder and Stoughton, 1981 [1946]
- Oorun: sono

orum
- Õòrùn: soLorum
- Òórùn: odor, cheiroorum
Òrun: céu espiritualórum
Òrùn: pescoçoórum
Orun: reverencia, saudação, arcoórum
- Orún: semana ioruba de cinco diasórum
Òrùń: cem, uma centenaórum

Complementando, vejamos estas expressões que nos parecem seriam capazes de iludir até mesmo um falante nativo:
– Olórùn: aquele que tem um pescoço

Olorum
– Olórun: DeusOlorum
– Olóõrun: dorminhocoOlorum
– Olóòórùn: cheiroso (ou fedido)Olorum

Outra palavra que tem gerado muita discussão é “bara”, que um certo livro- tese defende a ideia de ser o “ânimo” que dá vida e movimento ao ser humano, tese esta que não concordamos, pois contraria tudo que se escreveu até hoje sobre a Noção de Pessoa Iorubá. Apenas por curiosidade, sem entrar no âmago da questão, vejamos como esta palavra aparece nos dicionários:


Dictionary of Modern Yoruba, R. C. Abraham, London, Hodder and Stoughton, 1981 [1946]:
YORÙBÁIORUBÊ
- Bàrà = melancia > citrullus vulgaris.

Bara
- Bàrà = mausoléu real onde são enterrados os Aláààfin.Bara
- Bàrà = bàrà-bàrà = correr balançando o corpo.Bara
- Bára = encontro, reunião.Bara
- Bárà = uma coisa podre.Bara
- Bààrà = expressão ligada ao ato de defecar.Baara
- Báárà = o ato de estar começando algo.Baara
- Bárá-bárá = o ato de amarrar algo com firmeza.Bara-bara
- Bára-bàra = fazer algo superficialmentBara-bara


A Dictionary of the Yoruba Language, CMS, Ibadan, Oxford University Press, 1977 [1913]
- Bàrà = planta rasteira que fornece o óleo de semente egunsi.

Bara
- Bara = deus do engano, o demônio, IfáBara
- Bárabára = pequena quantidade.Barabara
- Bàrabàra = rapidamente, apressadamenteBarabara

Assim, pelo exposto, nota-se a facilidade de cometermos erros de tradução e de conceitos, contrários ou talvez até inexistentes, em suas raízes africanas.

Outrossim, sugiro que sejam revistas todas as reinterpretações apresentadas à guisa de tradução da nossa “herança fonética africana”, ou corremos o risco de reinventar a roda ao quadrado.

Axé para todos !

[1]Embora o “til” não corresponda exatamente à grafia do vocábulo.
[2]Expressão coloquial para designar uma palavra iorubá escrita em língua portuguesa, cuja ortografia não corresponde gramaticamente nem ao iorubá, nem ao português, visando apenas atender à adaptação tonal.
[3]Conjunto de canções, hinos e orações, sacras ou profanas, conservadas em dialeto de matriz africana em forma de tradição oral, transmitidas de uma geração à outra.

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